A propósito do que escrevi aqui, o Henrique Raposo pergunta-me sobre o que discordo no livro. Apesar de me rever na narrativa principal defendida no livro - a decadência da Europa e a emergência das novas potências na política mundial, com os Estados Unidos a reforçar a sua politica de alianças - fui encontrando ao longo da leitura do livro algumas discordâncias, nomeadamente no que concerte à política externa americana e ao seu futuro. Aqui ficam algumas.
Não discordo do diagnóstico que é efectuado no livro. No que diz respeito aos Estados Unidos, partilho algumas das críticas apontadas ao primeiro mandato do Presidente Bush. Mas, por exemplo, acho que ainda é muito cedo para dizer que a guerra do Iraque foi um fracasso. Essa é a teoria dominante, pois os anos seguintes à intervenção correram muito mal. Até à "surge" de David Petraeus e ao despedimento de Don Rumsfeld, a condução da guerra tinha sido um desastre, colocando em causa muito do que se pretendia para a região. Mas a médio prazo o objectivo principal ainda pode vir a ser alcançado: um Iraque estável, democrático e aliado do EUA. Pelo caminho também serviu de palco para a luta contra a Al-Qaeda, com esta a ser severamente derrotada. Aliás, não por acaso, Barack Obama, que foi um dos principais críticos da guerra desde que assumiu o seu lugar no Senado, manteve na essência a politica de W. Bush. Bem sabemos que, e como é bem descrito no livro, uma Administração americana é quase sempre é obrigada a seguir o caminho percorrido pela anterior administração. Mas havia quem defendesse outra estratégia na Casa Branca, como o VP Joe Biden. Obama apressou o calendário de retirada no Iraque, mas sabe-se que milhares soldados americanos irão manter-se no Iraque depois da “retirada” oficial. Se daqui a 10 anos o Iraque aprofundar a sua democracia e permanecer como um aliado americano na região, a avaliação que será feita será bem diferente da actual. Especialmente se as coisas também correrem bem no Afeganistão (aqui bem mais complicada a situação).
Outra divergência, ainda dentro desta temática: Condoleezza Rice e a forma como é descrita no livro. Admitindo que não fosse propriamente uma neoconservadora na Casa Branca, ela defendeu a guerra do Iraque, e recordo-me de ler no livro de Bob Woodward (Plano de Ataque) que Rice era das que, ao lado de Cheney, Rumsfeld e Wolfowitz, defendia o plano de “spread the democracy” no Médio Oriente. Concordo que no segundo mandato, quando exerceu o cargo de Secretária de Estado, actuou de forma diferente, empregando uma estratégia “realista”, mas isso também tinha sido uma opção de Bush, depois do fiasco pós-invasão do Iraque. Mas isso não apaga as ideias que defendeu no primeiro mandato e o apoio que ofereceu às teorias neoconservadoras reinantes no Pentágono na época.
Uma outra divergência que encontro no livro, esta mais estrutural, surge quando o Henrique defende que o “excepcionalismo americano” deve ser erradicado da politica externa americana. Não me parece que tal seja possível e talvez desejável. Ao apregoar que os EUA devem “esquecer a versão pura e dura (guerras de democratização) e a versão soft (apoio a dissidentes) das mudança de regime´”, e deixar de "dar lições de moral", o Henrique está a pedir uma verdadeira revolução na política externa americana. Se a primeira parte da equação parece-me muito provável que suceda na próxima década (a existir no Irão uma intervenção militar, as cores no conflito serão outras), não acredito que a versão soft seja relegada para segundo plano. Os EUA continuarão a apresentarem-se como um “farol” para os movimentos que lutam pela democracia (o Irão é o melhor exemplo, onde alguns grupos dissidentes continuam a ser apoiados). Por outro lado, e apesar da retórica ter mudado substancialmente, os EUA continuam a apoiar a frágil democracia georgiana, ameaçada pela Rússia, e Taiwan, apesar da China. Abandonar esta política poderia significar deixar cair a Geórgia ou mesmo Taiwan, por exemplo. Ao continuar a apoiar firmemente estes países, os EUA prosseguem a via do ‘excepcionalismo americano’ de defender a liberdade e a democracia. Não me parece que os Estados Unidos abandonem estas democracias para não afrontar os poderosos autocratas chineses e russos. Não consigo visualizar nenhum Presidente, democrata ou republicano, a desligar-se disto a médio prazo. Na verdade, no livro também se defende que isso será muito difícil de acontecer. O Partido Republicano mantém-se, apesar da crescente influência da ala libertária, empenhado nesta via. E o Partido Democrata, como se vê com Obama na Casa Branca, não mudará radicalmente. Até porque seriam sempre "massacrados" na opinião pública se tal o fizessem. Um pequeno episódio: Obama tinha recusado receber Dalai Lama em 2009, para não afrontar a China. Este ano, e depois de imensas criticas, lá o recebeu. Não digo que os EUA irão tomar passos rumo a uma nova guerra fria com a China ou a Rússia (nem devem). Mas não acho que manter esta via prejudique assim tanto as relações com a Rússia e a China. Apesar da retórica existente, durante os anos Bush, os EUA mantiveram boas relações com a Rússia e nunca as relações EUA-China tinham sido tão fortes.
Por fim uma palavra para a mal tratada Liga das Democracias defendida por Kagan, que isto já vai longo. Na verdade essa ideia está morta. E não acredito que regresse tão cedo, mesmo com um republicano a vencer em 2012. Mas essa ideia bem poderia bem ser um alargamento da NATO (que já é, de facto, uma liga restrita de democracias) a outros países aliados do velho Ocidente. Basta olhar para o Afeganistão e verificar que ao lado da NATO já combateram militares da Austrália, da Nova Zelândia ou da Coreia do Sul. Não estou convencido que seria desastroso para a coexistência entre democracias e autocracias.