Nos últimos dois meses Obama já tinha vindo a dar sinais desta viragem à esquerda, tendo ficado agora consumada com o discurso de tomada de posse. Num tom pouco habitual para estes momentos, Obama focou-se sobretudo em cinco áreas: armas, alterações climáticas, direitos dos gays, lei da imigração e defesa dos programas sociais. A América "liberal" rejubilou e os conservadores responderam com desdém. Agora falta o embate com a realidade, que não será assim tão dócil como o Presidente Obama desejaria, pois é difícil adivinhar como poderá ter sucesso em algumas destas suas invocações. Pelo menos nos próximos dois anos. Apesar da sua vitória clara de Novembro, a América continua a ser um país profundamente dividido, e as diferenças de opinião que existiam antes não terminaram. Além disso, nem Reagan nem Nixon, que tiveram vitórias com cerca de 60% dos votos, distantes do que Obama conseguiu, aprovaram tudo o que queriam. Precisamente porque não tinham a maioria no Congresso. Adivinho até que esta viragem à esquerda no discurso do Presidente poderá reanimar de novo as hostes conservadoras. Vamos por pontos.
No pacote de medidas que Obama já defendeu publicamente na questão das armas, o Congresso dificilmente aprovará mais do que algumas delas, como a limitação de compra de munições e o background check. Uma limitação à venda de armas de assalto será difícil de aprovar e na verdade, a oposição poderá não ser restrita aos republicanos. Em 2014 seis senadores democratas vão a eleições em estados onde Obama teve menos de 42 por cento, o que torna a vida complicada para estes senadores e muito dificilmente aprovarão legislação que seja demasiado liberal. Isto refere-se a este tema como a muitos outros. Além disso, na Câmara dos Representantes haverá sempre enorme resistência a várias medidas que Obama defende. O mais certo é que seja aprovada uma legislação minimalista nesta matéria.
Na legislação sobre as alterações climáticas, nomeadamente o cap and trade e a taxa de carbono, é difícil visualizar uma situação onde a Câmara dos Representantes possa aprovar isso. Para verificarmos o quão complicada é esta matéria para Obama, ele que teve uma ampla maioria no Congresso durante os primeiros dois anos de mandato, nunca chegou a propor nada nesta área. Porque sabia que não passaria. Não sei se a situação mudou assim tanto desde 2009 e 2010. Também aqui é de esperar que haja algumas medidas através das agências federais e da EPA, mas nada de significativo. E como ontem recordava o José Gomes André, assinar algum tratado internacional sobre esta matéria requer aprovação de 2/3 no senado. Alguém está a ver isto acontecer? Pois.
Em relação ao casamento gay, nada será aprovado significativo no Congresso. E a menos que Obama tenha também mudado de opinião nesse sentido, essa é uma questão que depende estados e que cada um deles tem vindo a lidar separadamente. Já há vários que o aprovaram, e é bem possível que com ajuda da retórica da presidência mais o façam nos próximos tempos. Mas não será através de nenhuma medida do poder federal. A menos que... haja alguma decisão do Supremo Tribunal.
Na imigração é onde me parece que Obama tem mais a ganhar. Ele sabe que os republicanos estão num canto sem saída nesta matéria, e não têm grande margem de manobra. O mais correcto (em termos públicos) seria uma legislação bipartidária e consensual entre as duas lideranças, como a que foi proposta por John McCain e Ted Kennedy na última década. Será aqui que Obama poderá alcançar uma grande vitória legislativa.
Por fim, a defesa dos programas sociais. Há hoje nos Estados Unidos um problema grave, que se agravou nos anos Obama: a dívida pública tem vindo a explodir, sendo que neste momento já vai em 16 biliões de dólares. A trajectória das despesas sociais até ao final da década deixam pouca margem de manobra para não haver reformas em dois sectores vitais: a segurança social e os programas da saúde, Medicare e Medicaid. Obama encomendou no primeiro mandato a uma comissão bipartidária (Simpson-Bowles) um plano para enfrentar o problema da dívida galopante. As propostas passavam por ampla reforma de cortes nas despesas sociais e na defesa e aumentos de impostos. Obama só tem demonstrado verdadeiro interesse nos cortes militares e no aumento da receita. Mas parece-me que é inevitável que haja também reformas nos sectores sociais. Não sei se daqui a uns tempos não veremos Obama defender reformas no Medicare e na Segurança Social. Veremos.
Mas, e perguntarão os leitores, porque Obama terá forçado na agenda estes temas, se ele sabe que tem poucas possibilidades de ser consequente? Por vários motivos, e bem compreensíveis, do seu ponto de vista. Ao focar-se neste temas está a demonstrar agradecimento à base eleitoral que o elegeu e a dizer-lhe que não esqueceu as suas prioridades. "Eu sou o presidente por quem vocês lutaram", quis ele dizer ontem. Mas pretende também incutir divisões no Partido Republicano em temas que o têm prejudicado na juventude, nomeadamente na questão do casamento gay, das alterações climáticas e das armas. Se não conseguir aprovar legislação nestas matérias, continuará a criar erosão do GOP nas camadas mais jovens da população. Além disso, e isso pode-se ver na sua nova forma de agir, Obama parece apostado em vencer um jogo de alto risco: se não conseguir nestes primeiros dois anos grande coisa no Congresso, poderá tentar contribuir para uma derrota do Partido Republicano em 2014 na Câmara dos Representantes, ficando com margem de manobra para depois nos dois últimos anos aprovar pacotes legislativos nestas e noutras matérias. Essa medida é arriscada, pois é sabido que os dois últimos anos do segundo mandato presidencial normalmente são pouco produtivos, pois os partidos políticos já só pensam na eleição presidencial seguinte.
Serão dois anos muito interessantes de seguir. Para já, fica o registo da nova estratégia dos republicanos, que me parece bem melhor do que tinham vindo a fazer até ao momento: vão aprovar o aumento do limite do endividamento até Maio sem discussões, sendo que fica registado que o Senado terá de aprovar um orçamento até essa data, algo que não fizeram nos últimos quatro anos. Ou seja, lançam o ónus da construção do novo orçamento para a maioria democrata, ficando sobre eles a responsabilidade de propor medidas difíceis para combater o défice e a dívida. Depois de dois meses sem saberem o que andavam a fazer, a maioria republicana na Câmara dos Representantes finalmente aprovou algo de jeito.